Hoje, quarta-feira de cinzas, a santa missa foi presidida pelo Pe. Jean Richard, professor de teologia, da PUC Minas e vigário da paróquia Bom Pastor, onde nosso seminário está instalado. Contamos também, de modo especial, com a presença da professora Virginia, professora de história da UFOP.
Pe. Jean ressaltou que no evangelho de São Mateus (Mt 6,1-6.16-18) encontramos três práticas penitenciais muito comuns no judaísmo, e que foram assimilados pela própria Igreja Católica: esmola, oração e jejum. Assim sendo, na quaresma tendemos a reforçar essas práticas, que não são exclusivamente da quaresma, mas de modo especial nesse tempo, as praticamos com mais empenho.
Pe. Jean frisou que logo no início do texto aprece a expressão “ficai atentos” que nos leva a refletir sobre uma atenção especial que devemos ter para vivermos como uma comunidade cristã. Surgem então um questionamento: em que os discípulos devem prestar atenção? Mateus coloca dois elementos: o primeiro é o comportamento e o segundo é a ostentação.
Sobre praticar a justiça, Pe. Jean nos disse que justiça, propriamente no evangelho de Mateus, tem tudo a ver com o comportamento e a vida dos cristãos, que vivem segundo a vontade de Deus, vivencia essa reconhecida pela pessoa de Jesus Cristo e pelos seus ensinamentos. Portanto, praticar a justiça é o comportamento de quem está comprometido com Deus. De qualquer modo, essa palavra justiça é algo pretendido, não sendo algo que vamos buscar nos tribunais ou diante de juízes, mas é o compromisso com a vida cotidiana, mas é algo que fazemos; tem a ver com o nosso cotidiano, com as práticas cotidianas iluminadas pelo evangelho.
São Mateus afirma que devemos praticar a justiça sem ostentar, ou seja, fazer algo para ser visto. Os fariseus eram grupos judaicos muito atento às práticas religiosas, mas tinham uma forte tendência a superficialidade de suas ações.
No decorrer do evangelho, Mateus fala sobre a recompensa. Receber a recompensa não significa fazer determinada coisa e se comportar de tal modo para que Deus te conceda algo.
Na primeira prática, o da esmola, a recompensa tem muito mais sentido do que nós poderíamos pensar, ou seja, uma reflexão para além da troca de tipo monetária. Ela carrega consigo uma síntese do Evangelho por isso está relacionada com a justiça praticada e não com a justiça preterida.
As práticas penitenciais e suas reflexões:
1 – Esmola
A esmola, que em grego se escreve (eleēmosynēn), tem como raiz a palavra (eleēmo) que significa “a misericórdia de Deus”, que é a ação efetiva e afetiva de Deus carregada de compaixão para conosco. Afetiva porque tem uma relação e efetiva porque como todos os sentimentos na bíblia, Deus atua com compaixão, concedendo graças diretamente na vida do homem.
O significado de compaixão (eleēmo) não é Deus sentindo dó pelo homem frágil, mas é todo amor que Ele derrama sobre esse homem frágil, exatamente porque é frágil, para fortalecê-lo nessa experiência de intimidade de redenção. Em Deus a misericórdia é ativa, ela se traduz como uma ação que produz algo na vida do homem.
Passando para a palavra mais complexa (eleēmosynēn) estamos aplicando esse sentido não mais a Deus, mas ao próprio homem, que em primeiro lugar é objeto dessa misericórdia. Deus é sempre sujeito, é aquele que faz, e nós somos os objetos que recebemos sua ação. Quando utilizamos a palavra (eleēmosynēn) estamos assimilando essa ação boa de Deus em nosso favor, assim podemos fazer algo pelo outro.
Pe. Jean mostrou que em Mateus a importância da misericórdia está relatada em dois momentos importantes: 1) No capítulo 9: “misericórdia eu quero”, aprendam que misericórdia é o que eu quero. Mateus expõe que o chamado de Deus é uma ação de misericórdia na nossa vida, portanto, o chamado não quer dizer que somos extraordinariamente maravilhosos e especiais, mas o chamado é o modo pelo qual Deus atualiza a sua misericórdia na nossa vida e que deve se moldar a partir do evangelho e da pessoa de Jesus Cristo. 2) capítulo 25: “porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes ver-me…” este texto é chamado de obras de Misericórdia, que no contexto escatológico se torna critério de julgamento de nossa vida diante do Senhor.
Essa esmola não é simplesmente tirar algo do bolso e dar, mesmo porque a prática de dar a esmola no judaísmo tem uma função de promover a justiça social. Para que essa ação seja de fato uma obra de misericórdia, uma obra concreta nas nossas relações humanas, o evangelho nos pede a descrição.
O problema da ostentação: O hipócrita é o contrário daquele que pratica a justiça na lógica de Cristo, é aquele que necessita mostrar, mas o evangelho nos perde a descrição, por isso evangelho diz que “eles já receberam a sua recompensa”, já foram exaltados e aplaudidos. O fato de uma mão não ver o que a outra faz é sempre um elemento de descrição, porque quem dá valor a esmola recebida é o pobre que a recebe, é ele quem dá o valor a esmola.
O evangelho não está estimulando a lógica monetária, dar alguma coisa para receber outra em troca. Pelo contrário, a recompensa que nos remete a Deus está em nos colocarmos diante da essência do mandamento que devemos gerenciar, educar e viver como todo cristão, que é: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Mateus sintetiza essas vivencias nessa máxima, nesse provérbio típico da comunidade Cristã.
O segredo, o ato oculto da esmola, está indicando que tudo aquilo que o cristão faz é cristão quando é vivido como um culto à Deus, a Deus e não a si próprio. Esse culto a Deus tem sentido quando ele vai impregnando a nossa vida e as nossas relações. A recompensa não nos coloca dentro da lógica monetária, mas está reforçando esse aspecto da duplicidade do mandamento do amor que primeiro é para Deus e logo em seguida é para o próximo. Todo gesto, toda ação cristã deve ser um culto a Deus, que se concretiza na vida do outro.
2 – Oração
É estranho que Cristo faz essa advertência numa cultura em que a oração era pública, que era feita de pé e murmurada. Rezar numa praça pública significa estar diante do olhar das pessoas, que passam e que podem cumprimentar e falar alguma coisa com você, colocando você em evidência. Já Jesus insiste em dizer que não façais como eles, como os hipócritas, pois “eles já receberam sua recompensa”, eles estão fora da lógica que a comunidade cristã precisa assimilar.
Receber a recompensa da oração, nesse contexto, não significa que Deus, no momento em que você rezou de modo discreto, realizará o que você pediu, mas significa o sentido da intimidade com que se prestou culto de fato a Deus.
3 – Jejum
Uma prática comum no judaísmo de quando jejuavam era que os judeus não lavavam rosto, não tomavam banho e entre os fariseus, de modo especial, vestiam-se com sacos e jogavam cinzas sobre suas cabeças. Jejum é uma prática com raízes no Antigo Testamento e em geral, Israel sempre fazia jejum quando estava em pecado. O jejum era a forma que Israel assumia para entrar no processo de reconhecimento de seu pecado, e o modo de levar o coração para Deus e alcançar a salvação.
Essa prática passou a ser institucionalizada. No meio judeu se fazia jejum na segunda e quinta. A comunidade cristã, após assimilar essa prática, para diferenciar-se do judaísmo, passou a fazer jejum na quarta e sexta.
A institucionalização das práticas penitencias traz por de trás um traço mau que é a ostentação: não lavar o rosto, não tomar banho, vestir-se de saco, colocar as cinzas sobre cabeça, tudo para explicitar o que se vivia. O problema da ostentação é o esvaziamento da prática do seu sentido de conversão, o ato que marca o reconhecimento do pecado e o início do processo de conversão, ou seja, um esforço de sair daquela condição de pecado para então viver plenamente o culto à Deus, não culto na forma ritual, mas oculto no cotidiano como prática de vida.
Um elemento novo é o perfume sobre a cabeça e o rosto limpo, que para nosso contexto atual é uma prática comum, mas o perfume de modo especial, naquela época, era o símbolo da alegria. O perfume era símbolo da festa, se usava para mostrar que se estava em festa. Jesus Cristo em Mateus inverte o próprio sentido do jejum, não tirando seu aspecto penitencial.
Fazemos jejum porque reconhecemos ser pecadores, fazemos jejum como uma prática que nos leva a tomar consciência que somos dependentes “de” (Deus). No jejum nós provamos a fome e a fome quer dizer que o nosso corpo não é capaz de gerar energia por si só, nós precisamos de algo que vem de fora e aquilo que vem de fora para nos alimentar é dom de Deus. Deus nos concede o alimento que sustenta a nossa vida, portanto, o jejum é uma prática penitencial que nos leva a tomar consciência de nossa dependência de Deus, mas é também uma prática de vida na alegria messiânica por que em Cristo, Deus nos alimenta não só o estômago, mas com tudo aquilo que na vida do Messias é produzido como experiência de salvação, ou seja, nos alimentando para a vida física como para a vida eterna, nos alimentando para a vida de ressurreição.
Pe. Jean encerrando sua homilia disse que é nesse sentido que devemos atravessar a quaresma, vivendo um período de penitência marcado pela sobriedade, descrição, não pela tristeza de quem ostenta a penitência.
Homilia de Pe. Jean Richard Lopes, 14 de fevereiro de 2018, Seminário São José.
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